Wednesday, September 15, 2010

João, pastor no reino das Sete Cidades

Já encontrei diversas versões desta lenda (nenhuma, porém, como a de Daniel de Sá, a qual reproduzo - embora em versão reduzida). Para interessad@s na versão integral, pedir o livro à Lueji ;-) ou... consultar o post no blog do autor.

Esta questão das versões remete-me para o prefácio (ou para as primeiras páginas) do livro da Fatema Mernissi em que ela toca esta temática: a da tradição oral e das possibilidades de subversão na oralidade (e que a escrita limita). Neste caso, o autor açoriano apresenta uma versão na qual João se torna... basicamente... um canalha. Embora o impedimento para a concretização do amor da princesa e do pastor continue a ser um problema de castas, este não é provocado pelo soberano  - como as noutras versões: embora o rei se oponha a princesa mantém-se irredutível - mas antes pelo elemento masculino do casal que mostra ter uma visão instrumentalista da amada: afinal de contas, ele apaixonara-se por uma nobre e não por uma simplória.

Dorme à sombra de ervas altas, num sítio onde há-de abrir-se, pela subversão da catástrofe, o abismo do vulcão pacificado. A princesa do reino vem de passeio com a sua ama, e foge-lhe, ao perseguir uma borboleta azul. De repente dá com ele na ausêncisa do sono. Pára, em sossego, para não o perturbar. Fascinada pela beleza do jovem adormecido. (...)
João desperta com qualquer ruído, ou porque acabou o sono, e pensa que ainda sonha. A uma princesa pode conceder-se o direito de dizer a um homem "amo-te". João não o dirá, ainda que o sinta. Mas ela não fala. Os olhos bastam. (...)
Na corte, há quem grite e quem emudeça, conforme os privilégios da hierarquia lhe consentem manifestar-se contra o inaudito escândalo. Três princípes esperam uma promessa de casamento. (...)


A princesa não entende os negócios do Estado e só diz um nome e uma vontade. (...) 


A ama recebe ordem de a despir, e ela fica quase nua, por momentos. Contemplam-na o êxtase e a vergonha. Dá-lhe o pai, para as vistas, uma blusa pequena, verde como as ervas que há-de invejar aos animais, quando não tiver o que comer, porque a afasta da sua mesa, e uma saia grande, que lhe cai aos pés, azul da cor do céu que há-de cobri-la, quando lhe faltar abrigo, porque a expulsa do palácio.
Há quem chore, não ela. Mais real do que nunca, desliza entre os nobres, os embaixadores, os criados, desce a escadaria sem pressa e sem temor. Não corre, saboreia, calma, o primeiro passeio sem a sua ama, goza, antes do gozo, o fascínio do seu amor liberto. (...) 
E imagina-se a ser coroada rainha pelas boninas e malmequeres com que João lhe cingirá a cabeça.
João dorme, como sempre, àquela hora. A princesa desperta-o com um beijo. Ele estranha-lhe a roupa, o sinal de que a tornaram livre dos reais deveres, e já pode ser toda dele toda a vida. João não a abraça, não a exulta.


 Quere-a princesa e repudia-a plebeia. 

Ela vive apenas até ter a certeza de que ele diz o que sente.

Os deuses, que não olham a preços para conceder prémios ou exercer vinganças, revolvem as entranhas da terra com mil vulcões, que trazem à superfície todas as safiras e esmeraldas que ela guardava no seio. E cobrem, com milhões de pedras preciosas, como as últimas cores que a vestiram, um mausoléu enorme de basalto, que tem a forma do corpo da princesa, e muito fundo para que ninguém o veja nem perturbe o sossego dela.

Daniel de Sá in Ilha Grande Fechada.
Picture by David LaChapelle


1 comment:

Lueji said...

Ohhh, já não me lembrava. Dezasseis anos é muito tempo! :)