Thursday, December 14, 2006

Li e cito

"As leis são furiosas na Europa contra aqueles que se matam a si próprios: fazem-nos morrer, por assim dizer, uma segunda vez; são arrastados indignamente pelas ruas; cobrem-nos de vergonha; confiscam-lhe os bens. Parece-me, Ibben, que estas leis são bem injustas. Quando estou esmagado pela dor, pela miséria, pelo desprezo, porque querem impedir-me de pôr termo às minhas penas, e privar-me cruelmente de um remédio que está nas minhas mãos? Porque razão se pretende que eu trabalhe para uma sociedade, à qual não quero pertencer mais? Que cumpra, mau grado meu, uma convenção que se faz sem mim? A sociedade está apoiada numa vantagem mútua. Mas quando se torna onerosa para mim, quem me impede de renunciar? A vida foi-me dada como um favor; posso portanto restitui-la quando já não o é: a causa cessa; logo o efeito deve cessar também. (...) Mas, dirão, vós perturbais a ordem da Providência. Deus uniu a vossa alma ao vosso corpo, e vós os separais. Logo estais a opor-vos aos seus desígnios, e resistis-lhe. Que quer isso dizer? Perturbo a ordem da Providência, quando altero as modificações da matéria e torno quadrada uma bola que as primeiras leis do movimento, quer dizer as leis da criação e da conservação, tinham feito redonda? Não, sem dúvida: não faço mais que usar o direito que me foi dado e, neste sentido, posso perturbar segundo a minha fantasia toda a natureza, sem que se possa dizer que me oponho à Providência. Quando a minha alma for separada do meu corpo, haverá menos ordem e menos coordenação no Universo? Acreditais que esta nova combinação seja menos perfeita e menos dependente das leis gerais? Que o Mundo ali tenha perdido alguma coisa? E que as obras de Deus sejam menores, ou antes, menos imensas? Pensais que o meus corpo, tornado uma espiga de trigo, um verme, erva, esteja transformado numa obra da Natureza menos digna dela, e que a minha alma, liberta de tudo aquilo que tinha de terrestre, se tenha tornado menos sublime? Todas estas ideias, meu caro Ibben, não têm outra origem que não seja o nosso orgulho; nós não sentimos a nossa pequenez, e, apesar de a termos, queremos ser considerados no Universo, nele figurar e nele ser objecto importante. Nós imaginamos que o aniquilamento de um ser tão perfeito como nós degradaria toda a natureza, e não reconhecemos que um homem a mais ou a menos no mundo- que estou a dizer? - todos os homens juntos, cem milhões de cabeças como a nossa, não passam de um átomo subtil e leve, que Deus distingue apenas por causa da imensidade dos seus conhecimentos."
in "Cartas Persas", Montesquieu (1721)

2 comments:

Anonymous said...

Fantástico "esse tal de Montesquieu". E tão actuais que são as suas palavras. Quem é? Algum jornalista sem papas na língua?

;-)

Tamodachi said...

Não, era apenas um gajo qualquer sem nada para fazer na vida, que decidiu escrever heresias.
Por acaso escreveu-as bem!
;)