Já nos tínhamos cruzado num dos estreitos lineares. Voltei a encontrá-la na caixa. Remexia a mala em busca de algo: "entrei sem nada e saio sem nada", comentou olhando-me nos olhos, enquanto tirava um envelope com um vale postal, que percebi ser da reforma: 285€. "esqueci-me de ir levantá-lo aos correios", desculpou-se.
Na cabeça - coberta de cabelos brancos- viam-se uns fios negros. Olhei para a fotografia do bilhete de identidade tentando perceber como teria sido aquela mulher antes de estar escondida naquele casaco demasiado grande. antes de ter o rosto totalmente marcado. antes de ter costas desenhadas numa curva acentuada. antes daquela magreza assustadora e, sobretudo, antes daquele cheiro tão familiar. A fotografia ostentava uma mulher (já) de cabelo branco - mas ainda viçoso -, de lábios vermelhos e sorriso expressivo. Bastante diferente do Ser Humano que estava ali mesmo ao meu lado: os olhos ainda brilhantes, mas as pestanas já encurtadas e juntas em pequenos grupos. Ela ainda sorri, num daqueles trejeitos que passam por sorrisos sem o ser.
O interior da mala - que fez questão de mostrar ao funcionário da caixa - estava rasgado e vazio. "venho aqui há 40 anos, já me deviam conhecer", reclamou num tom negligente. Pareceu-me ouvi-la gritar: já não se lembram de mim? Como puderam todos esquecer-me?
Imagem de Peter Marlow
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