Saturday, July 01, 2006
Trocaram-me de mãe no hospital. Como nos filmes, sabes.
Mandaram embora, de mãos a abanar, a que entrara na certeza de sair com um recém-nascido nos braços, e entregaram-me à que chegara naquela tarde de chuva à procura de remédio contra as dores de cabeça e contra o medo de enlouquecer.
Juro-te: durante muitos anos foi isto que eu pensei.
Não tinha outra explicação. Não podia ter.
Só assim se entendia que ela nunca dissesse o meu nome, que repetisse tantas vezes que estava velha de mais para ser mãe fosse de quem fosse, e que os meus passos, por mais leves, lhe provocassem «crises», como dizia o meu pai.
Durante muito tempo também pensei que «crises» era o termo científico para designar as dores de cabeça ou a loucura.
- Um dia destes endoideço – repetia ela.
- São as tuas crises – murmurava o pai.
Só assim se entendia que eu passasse tantas horas debruçada sobre a mesa de mármore da cozinha, ouvindo as cantigas e as histórias de Leonor, e o bichanar das espanholas na Sala de Visitas, sem que ela se lembrasse de vir ter comigo, olhar uma vez que fosse para os meus cadernos, ralhar-me por ter letra feia ou elogiar-me, se a achasse bonita.
In Os Olhos de Ana Marta, Alice Vieira
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