Saturday, December 15, 2012

Pequena Janela para a Cozinha



Rita Magalhães
O dia cresce neste espaço confinado ao olhar de alguém.
Torna-se abrupto, escuro, torna-se silêncio.
Confio em ti sem voz ou rosto ou recordação, confio
Neste tempo que resta antes de me assaltarem os sonhos.
Saibamos nós que já não existes, que és essa hora que ainda não deu
E toda a noite será cedo para aplacar o desejo.
Tu eras a cidade onde o corpo se sentia, vida pelas ruas gritando
"Que não morre, ou mora em sítio algum",
E de cada vez que crescias perdias mais tempo, não querias parar
Ou querias e não podias porque, no fundo sabias e sabes,
Que, mais cedo ou mais tarde, tudo acabará.
És agora outra, mais Bela, e eu, se ainda fecho os olhos por vezes,
E com a calma de quem tudo vê vejo-te
Entre os arcos de cá e o mar que nunca vimos juntos, e a casa da ladeira
E a pequena janela para a cozinha,
E não desejo mais do que não voltar por estares presente cá.
Na verdade resta-me muito tempo,
Sobram-me dúvidas, olhares, sobra-me o fundo de um copo
Que ninguém e de nada me serviu.
Sobra-me o medo, aquele que eu tanto via,
E tu nunca percebeste.
Mas faltas-me tu por vezes como hoje em que o dia é farto.
E o olhar neste canto da casa não consegue contemplar 
Todas as horas que em ti se viam.

João Ferreira, 2000



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