«Quando ha peste ainda naõ falta quem assista aos enfermos com o risco de ficar contagiado, quando ha forme tambem ha quem se prive do alimento para acudir ao faminto; quando ha guerra naõ falta quem arrisque a vida propria por salvar a do amigo, Pay, ou parente, mas na occasiao do terremoto se verificou aquelle adagio atéqui pouco verdadeiro, de que naõ ha Pay por filho, nem filho por Pay.»
(...) o que este parágrafo tenta de forma muito resumida é avançar com uma hipótese de explicação para estas atitudes egoístas - no sentido mais próprio de «preservação do eu». E, mais notável ainda, essa explicação radica na própria natureza do terramoto enquanto catástrofe diferente de todas as outras, catástrofe pura porque catástrofe descontextualizada.
Em todas as outras ocasiões das misérias humanas há quem mostre o pior, mas também o melhor, da nossa natureza. Na peste, na guerra, na fome, há quem se coloque em risco para ajudar o próximo; no terramoto não. Mas o que todas as outras calamidades têm de comum entre si, e de distinto do terramoto, é serem prolongadas no tempo, ou melhor: é terem um contexto. Num contexto é possível fazer escolhas. Mas o sismo chega de repente; não se sabe que vai começar nem quando acabará - e os mesmos crentes com o coração cheio de amor caridoso que se encontravam na missa momentos atrás tiveram então de fazer as suas escolhas munidos apenas do mais básico dos seus corpos e consciências - e não de sistemas morais desenvolvidos durante milénios ou descritos com filosofia rebuscada. É essa a diferença, e por isso o terramoto é tão verdadeiro: revela os humanos despidos de cultura, que é o seu contexto."
Rui Tavares in "O Pequeno Livro do Grande Terramoto"
Imagem: As Tentações de Santo Antão, de Hieronymus Bosch
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