Thursday, February 15, 2007

Classificados


Ficava horas a olhar para o papel branco.

Condensar os momentos importantes da vida em três páginas. O lápis a rasgar a folha branca, manchada de tanta revisão, de tanto apagar e reescrever a estória. Agora isto é importante; para aquilo já não é. E corta, cola, refaz, reescreve. Esquece as primeiras coisas, os acontecimentos intermédios, o que deu prazer, o que fez por obrigação. Reduz. Reduzir ainda mais. Os três erres: reduzir, reciclar e reutilizar. Reutilizar as moradas electrónicas, os números de telefone. Reduzir os acontecimentos a nada. Impõe-se reciclar a vida, a carreira, a roupa, a casa, os amigos, o marido, os filhos. o acessório. E, invariavelmente, tudo termina com a língua colada ao envelope (esgotou-se a cola e não dá crédito aos hoaxes), na esperança de conferir verosimilhança aos papéis.

As tentativas de reescrita da vida. Tudo naquelas páginas. Os olhos indiferentes a percorrerem as linhas - na diagonal. Tudo se resume a correspondência de má qualidade. Olha para o envelope que se irá confundir no meio dos milhares de outros irmãos, os quais, como ela, procuram um novo papel na vida.

A carta passa pelas mãos que lhe hão-de dar um novo destino. Alguém irá olhar para aquelas linhas rasuradas e avaliar a vida daquele que lha enviou. A sorte ditará o lado para que cairá o envelope. o destruidor de papel ávido por aquelas folhas, sempre a gritar pelo braço que o alimenta. O ruído do papel a ser consumido pelas lâminas.

Picture: Shout, by Misha Gordin


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