Wednesday, August 09, 2006

Sem Emoções

"Já não há esperança".
Disse-mo como quem comenta a ementa de um restaurante. Será que como com salada? Sim, com salada pode ser. Como quem já se habituou a ter a morte sempre à espreita. E quando acredita que ela lhes virou as costas, eis que reaparece. Confessou que não pode dizer-lhe, que se lhe mostrar a menor dúvida ele não aguentará e deixará de lutar. Então convence-se de que tem que ser forte. E é-o. É-o simplesmente. Não deixa verter uma lágrima que seja, não lhe vemos qualquer trejeito no rosto que indicie tristeza, ou sequer revolta. Somente aquela pseudo-apatia. Pois não é apatia - ela reage. E a sua reacção é de rejeição à tristeza, à solitude de um ser que deixará de existir e que ela irá ver desaparecer, sentada num lugar de primeira fila.
A primeira tentativa para travar um cancro ocorreu um mês após o nascimento da filha de ambos, já com três anos. Quando o vi a última vez - precisamente há um ano, pareceu-me bem. Nem me lembrei que a grande mancha que lhe afectava o pescoço, e a pele a escamar eram os sinais de uma luta dolorosa e silenciosa.
"O cancro já está nos pulmões", explicou-me. "Vamos a Espanha, para consultar um médico de que nos falaram".
No meio, falava da filha de ambos: "quero que a menina tenha férias a sério, ela não pode estar sempre aqui, mas sei que ele precisa dela".
"Ele está a morrer, Dirim." disse-me um amigo em comum. "A morrer". Repetia a frase como que para enfrentar o meu olhar de incredulidade. Para me acordar daquela letargia sem nexo. Como pode ser, pensei eu? Se há pessoas que eu sei que nunca morrem. Cuja característica mais vincada é o poder da eternidade. Não da imortalidade, bem visto, mas da eternidade. Mas como pode ser, repetia eu? Ao olhar para a mulher que está ao lado dele - que tem estado ao lado dele - percebi que sim, que podia ser. Com ele, morria parte dela também. Muito antes de a terra lhe provar o sabor do cadáver, já a morte lhes lançou o abraço: a ele, a ela, e a todos os que o amam.

4 comments:

Woman Once a Bird said...

Sem palavras!

angelofpromise said...

Uma vez ouvi dizer que a morte é o estado mais solitário que enfrentamos, que partimos totalmente sós e alguém me disse que é impossível, porque parte do que morre nas pessoas que nos amam, morre connosco e não nos deixa seguir sós.

Dirim said...

Angel: só te posso dar (obviamente) a minha percepção, fruto da minha experiência - as pessoas sentem de formas diferentes. Aos 15 - por ter assistido à morte lenta e dolorosa de uma prima de 7 -, não tive a menor dúvida que, ali, naquela cerimónia, onde (supostamente) se encerrava o luto, para os que a amavam, era só a continuação de um processo que começara desde o momento em que lhe fora diagnosticada a doença. Por isso, e por ter vivido esta experiência que me marcou inexoravelmente, há muito que sei (sinto) que a morte nem sempre é um caminho solitário. Nesta perspectiva, pelo menos, quando escrevi: "Ao olhar para a mulher que está ao lado dele - que tem estado ao lado dele - percebi (..)" era somente uma confirmação, como se o percebi fosse um "mais uma vez"... só isso. Não sei se é impossível alguém morrer só.

Dirim said...

Timbuktu.