Saturday, June 17, 2006

NERECUPERABILI (IRRECUPERÁVEIS)

Este é um excerto de uma reportagem da autoria de Luís Pedro Nunes e Alfredo Cunha, publicada no Público de 1991. Na Roménia, heranças de Ceaucescu. A ignomínia humana não tem limites.
"You must be strong Mas mais do que o aviso do director, algo diferente, obsessivo, corporal, intenso, deixara todos de sobreaviso. Logo à entrada de Camin, mesmo antes de se ultrapassar a porta principal: o Cheiro. Sobretudo, o cheiro. Logo no primeiro passo dado no interior do quarto, o que apetece é o vómito, como se uma barreira viscosa se interpusesse entre nós e aquele espaço de nojo. Algo revoltante que se sobrepõe à necessidade de ali entrar. As lágrimas surgem nos olhos. Não que alguém esteja comovido. Não por alguma razão humanitária. Nem tão-pouco porque já se tenha visto algo de terrífico ou impressionante. O cheiro de defecções humanas acumuladas durante anos e anos multiplicado agora pelo excesso de aquecimento leva alguém a dizer: não vou conseguir entrar. Aquele era o quarto preparado. O que tinha sido limpo para a visita dos médicos. Chegara-lhes a informação que traziam consigo jornalistas autorizados. Em Bîlteni, os medos imediatamente detectáveis são outros: crianças que temem as batas brancas usadas pelas enfermeiras romenas. Pavores registados nas suas memórias. A associação que fazem a esta peça de vestuário aterra-as. Entra-se finalmente no quarto. (...) As crianças agitam-se. As que conseguem sair da cama agarram-se, de forma suplicante, num desejo único: subir para o colo. É com ansiedade que tentam galgar pelas pernas dos adultos, as personagens de uma visita inesperada. Desesperam por não o conseguir, gritam, guincham à procura da pessoa, na sofreguidão de a cheirar, de lhe tocar. (...) Um dos miúdos entreter-se-á a encostar suavemente o nariz à mão de uma das enfermeiras portuguesas. Com os dedos toca, sensível e levemente. Com uma idade aproximada entre os 10 e os 13 anos, embora com aparência de cinco ou seis, começou, para ele, a aprendizagem do tacto. Por vezes mal se repara que são três por cama. Vê-se que uma das crianças está na cabeceira, outra aos pés, mas sob a cama estão registados três nomes. Levanta-se a manta, e lá do meio surge, de repente, uma cara, normalmente de crianças cegas que buscam segurança debaixo dos lençóis. Surpreendidos ao serem destapados, cheiram e esforçam-se em esgares, que só por aproximação se podem considerar humanos. Para primeira visita, chega. Nessa noite, a equipa portuguesa fica instalada no dormitório do internato de raparigas, dividida em quartos pouco limpos e lençóis sujos, oferta do responsável pelo colégio, que se multiplica em desculpas. Aqueles quartos servem como penitência. Aliviam o complexo de culpa de quem sempre viveu muitos pontos acima daquela condição. “Quando aqui cheguei, a maioria deles nunca tinha saído da cama”, explica Corinne. Grande parte deles está em posição intra-uterina. Mantêm a mesma colocação de pernas e braços de antes de nascer. Nunca evoluíram, dado que nunca foram estimulados para abandonar aposição fetal. Ou, noutras palavras, embora com graves deficiências mentais, aquelas crianças até poderiam andar, caso tivessem sido ensinadas. Agora, quase todos têm deformações nos pés, alguns por deficiências congénitas. Mas em muitos casos trata-se de um comportamento adquirido. (...) agarra nas pernas de uma criança, estica-lhas e mostra as plantas dos pés, virados para dentro. Fora do olhar das “enfermeiras romenas”, e nos poucos momentos que não quer subir para o colo, um miúdo, velho conhecido, mostra orgulhoso uma camisola interior nova. Noutra cama, Ion, uma criança com graves deficiências, invisual, sai debaixo dos lençóis e grita desesperadamente ‘bonjour’. É a palavra com que Corinne o cumprimenta todas as manhãs, em francês. Para Ion, bonjour tem outro significado. Esta palavra que repete enquanto esbraceja à procura de uma pessoa que pressente é sinónimo de carinho, festas, contacto físico. Quando agarra uma mão, ou uma peça de roupa, esfrega-se nela. Como se se tratasse de um tesouro, Ion fica deitado, a tentar detectar um ténue odor que terá permanecido em si. Uma réstia de desodorizante do Ocidente, transformado num indescritível sentimento de felicidade. A lógica do assassínio estatal organizado Os Camin Spital inserem-se numa lógica de assassínio colectivo premeditado. Durante alguns anos, Ceaucescu decretou uma política de natalidade que obrigava todas as mulheres, entre os 12 e os 45 anos, a terem um mínimo de cinco filhos. Os deficientes, os não produtivos, deveriam ser entregues aos cuidados do Estado. Os abortos eram proibidos. Muitas crianças eram abandonadas. Um centro de triagem enviava-as para uma instituição – os Camin Spital. Locais, na sua maioria, longe de qualquer povoação. Sem apoio médico, deficiente alimentação e vestuário, com privação de água e luz. E sem aquecimento no Inverno, quando as temperaturas descem muitas vezes a uma dezena de graus abaixo de zero. As mortes iam sucedendo ‘naturalmente’. (...) ‘Papú! Papú!’ à entrada de uma das salas de jogos, as crianças atiram-se para cima de nós. Lutam e batem-se entre elas para disputar a nossa atenção, enquanto à volta se sente um cheiro nauseabundo. Em Vînjulet não há água canalizada. Um poço para 70 idosos e 56 crianças, que há um mês tomaram banho pela primeira e única vez nas suas vidas. Depois de três dias de convivência com este cheiro, embora não se lhe fique indiferente, já não se acha tão repugnante. Quando nos cercam, torna-se possível olhar em redor. Estamos numa sala degradada, com duas tábuas na parede, a fazer de bancos. Para além da reunião à nossa volta, várias crianças que não podem andar tentam arrastar-se até nós. Nas tábuas, indiferentes a tudo, os autistas balanceiam os corpos. Ao andarmos alguns metros, ficamos com a sensação de ter percorrido 50 anos no tempo. É como se, de repente, víssemos aquelas crianças – as ‘sobreviventes’ – projectadas no futuro, já na fase terminal da vida. Homens e mulheres no mesmo quarto. Manchas de urina cobrindo quase a totalidade dos lençóis, o cheiro das fezes misturado com o do tabaco. Quando os habitantes da ala das crianças atingem os 18 anos transitam para esta parte. Ao fundo, de pé, junto da janela, está uma velha desguelhada. A seu lado, sentado numa cama, mexe-se alguém que aparenta ser um miúdo de 8 anos. Autista. Balança-se para a frente e para trás, a um ritmo alucinante, enquanto murmura um som. Aqui? ‘sim, claro, tem 23 anos’. (...) Por fim, um olhar pelo quarto dos ‘violentos’, pacificados pelo efeito de fortes sedativos. Esgotados os objectivos, restam apenas duas palavras: nojo e miséria. Pelo corredor, antes de se atingir o gélido e purificado ar romeno, ainda se ouvem gritos."
Para conhecerem parte da história do rapaz da foto: http://www.hopeandhomes.org/story%204.htm

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