Thursday, January 05, 2006

Palmeira

Aqui fica mais um bocadinho de África. Um excerto um tanto longo, mas...
"...fui ontem ver o mar. E o mar não era de prata, nem de azul. Era de mar somente. Mar-mar, cheio de si mesmo e água salgada. E havia ondas, e tudo era tépido numa carícia larga. Peixes saltando esguias danças de caça aos mosquitos. Depois, foi o caso daquela palmeira, raízes esventradas, erguendo-se inteira por dentro do mar. Nem mesmo a criança nua apagou dos olhos o verde das palmas por sobre as águas salinas. A palmeira (seria coqueiro?) era só no mar. Só e viva contra a lei que afirma que o sal mata o verde das plantas!... E ela lá continua, nasceu ali mesmo e foi crescendo. Hoje é adulta e nunca de lá saiu. Em pleno território de algas, anémonas e peixes ergue-se uma palmeira (coqueiro?), altaneira e segura. E quanto mais o mar esventra as raízes, mais fundo ela cava, mais fundo se firma, e mais ao alto se ergue. Hoje divido contigo a emoção da palmeira, cônscio de ta não dar inteira. Divido pelo prazer de dividir... contigo. A palmeira há-de lá estar até que desista e caia na cova funda do mar que a desejou inerte. Se viveu? É solitária e sábia como o silêncio. Nem mesmo o vento a demoveu. Tremeu, rangeu, gritou dores de pedaços arrancados, mas com o corpo em chaga ficou, fiel e firme, no alento cálido das palmas ondeando na brisa. Quando a chuva veio, abriu clorofila e bebeu, trágica na sede, sorrindo ao sol por entre as nuvens. Ela lá está, olhando o longe, gesto quieto na mansidão perpétua. Nada faz para sair, mas tudo para ficar. Amar a terra agreste, salobra e agressiva é o seu mister. Por isso ali fica, solene, vestida de cicatrizes, brincando nas ondas que brincam no corpo erguido e estranho. Mística, acorda ao romper da lua, deixando-se bela na sombra que a noite pinta o ondear sobre o mar. Mira-se, vaidosa, no espelho pintado de luar e para ali fica, eternidade sem flores, nem frutos, nem. Assexuada, como a solidão impõe, cresce deusa e morrerá musa. E quando as estrelas iniciam o cintilar da noite, ela já lá estava esperando-as. Lestas as estrelas atiram clarões de lumes velozes e seguros, mas já lá acham a palmeira, serena e bela, em sua espera. Condenada a viver longe das outras, ela se afastou, suave e tímida, recusando-se. Entrou no mar e ali ficou para sempre palmeira-solitária. Mas quando na noite o marulhar das folhas anuncia o despertar para o gosto do amor das palmas comunitárias roçando-se lascivas, ela contempla estrelas de pés banhados na mansidão marinha. Recusaram-lhe o gesto, mas sobra-lhe poesia."
Autor: Afonso Milando Título: Malungo solitário